segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Guia doutrinal do Caminho de Perfeição

1. Motivação inicial

Caminho de perfeição é algo assim como uma “viagem interior à plenitude”. O ser humano tem que amadurecer, tem que aprender a ser pessoa. E como pessoas, em sentido metafórico, somos “recipientes”, que podemos nos sentir tão cheios como vazios. “Plenitude” vem de “pleno”, que etimologicamente é o mesmo que “cheio”. Pois bem, a própria oração teresiana (meditação consciente, oração centrante e oração contemplativa, assim aparece estruturada nesta obra de Teresa) está exposta como um caminho para a “plenitude” do humano. Uma viagem para encher-nos de Deus, ou melhor dito, para deixar que Deus nos encha de seu amor e sua verdade. “Não nos imaginemos ‘ocas’ no interior” (C 28, 10), Teresa recorda à suas companheiras carmelitas nessa sua linguagem tão direta e tão expressiva. E hoje recorda a nós.

Um dos grandes encantos e dos atrativos mais poderosos de Caminho de Perfeição, e sem dúvida, um dos traços mais peculiares do estilo e linguagem teresianos, é essa assombrosa capacidade para escrever dialogando com todo o mundo. Teresa escreve, e ao mesmo tempo, dá a impressão de que está falando com todos nós: com suas primeiras destinatárias (suas irmãs carmelitas), com seu confessor, com o censor, com Deus, com o leitor de todos os tempos..., contigo, comigo. Esse cortar o fio do discurso para dirigir-se a Deus (‘destapando-se’ espiritualmente diante do leitor), define também outro dos traços mais fascinantes do estilo orante desta mulher tão apaixonada.

Teresa toma a palavra para falar de Deus, falando de si mesma, dizia C. Kaufmann. E o faz sempre com uma linguagem autoimplicativa, de caráter existencial, que marca toda uma maneira de viver. E assim, por meio do livro do Caminho, e apelando à suas primeiras destinatárias, suas monjas, lhes diz: “Este é o vosso trato e linguagem; quem quiser tratar convosco deve aprendê-lo” (C 20, 4). Nova “linguagem”, pois, porém também novo “trato”, nova forma de entender as relações humanas e a mesma relação com Deus. Que Deus é novo cada momento, parece ser outra consigna teresiana. Aventurar-se a ler Caminho supõe entrar em permanente diálogo com esse Deus, eterna novidade. Porém, que ao mesmo tempo é o mais próximo a nós mesmos, o mais íntimo, o mais familiar.

2. A obra e seu gênero

Teresa escreveu duas vezes esta obra. O autógrafo da primeira redação, mais espontânea e coloquial, mais informal e menos estruturada, se conserva no Real Mosteiro de El Escorial (Madri); a segunda redação, que perdeu em frescor, porém ganhou em clareza doutrinal (ao menos isso se costuma dizer), se conserva no convento das irmãs carmelitas descalças de Valladolid. Os 73 capítulos da primeira redação ficaram reduzidos a 42 na segunda.

Há alguns anos, Frei Tomás Álvarez propôs o ano de 1566 como data mais provável para sua composição, apoiando-se em dados de crítica interna do mesmo livro. Teresa escreve a obra sendo priora do convento de São José de Ávila; tendo as carmelitas dali e daquele tempo, como as primeiras destinatárias; o faz depois de escrever Vida, e sendo P. Bañez seu confessor e censor. Tudo faz pensar, além do mais, na continuidade das duas redações da obra dentro do mesmo ano de 1566: em janeiro ou fevereiro a primeira redação; pelo verão ou princípios do outono a segunda.

“Este livro trata de avisos e conselhos...”, parece ser o título mais antigo. A Santa não pôs, pois, título; simplesmente falava de “Avisos e conselhos”. Também se referiu a ele com o nome de O librillo e o Paternóster. No verso da primeira folha do código de Valladolid, aparece o título que se tornará famoso, com grafia de duvidosa autenticidade teresiana: “Caminho de Perfeição”, título que a Santa conheceu e aprovou nas cópias por ela revisadas.

Pelo que se refere ao gênero literário de Caminho, essencialmente, poderíamos afirmar o seguinte: em sua primeira redação (a do Escorial), nos dá a impressão de que a autora não estava escrevendo um livro de espiritualidade, mas uma longa carta ( ao modo de gênero epistolar) à suas irmãs e filhas, as carmelitas de São José, síntese de suas conversas entre bromas e verdades, entre recreações e capítulos conventuais, como as antigas colações dos Padres do Deserto (D. de Pablo Maroto). Comunicação verbal da mãe com as filhas, entre a Fundadora e suas discípulas. Na segunda redação, a que temos como referência agora, o tratadístico ou doutrinal ou didático está muito mais perfilado, ainda que perca um pouco deste frescor teresiano e esse caráter conversacional dominante na primeira redação.

3. Chaves e estrutura geral

Na linha do que chamaremos o humanismo evangélico teresiano e os assim chamados fundamentos da vida interior (ou oração), cremos que na seguinte citação está uma das chaves hermenêuticas do Caminho de Perfeição:

“Algumas coisas que são necessárias ter as que pretendem levar caminho de oração [...] A primeira é o amor de umas para com as outras; a segunda, o desapego de todo o criado; a terceira, a verdadeira humildade – que, embora tratada por último, é a principal, abraçando a todas.”( C 4, 4).

E é que, a ressalva feita do nuclear do tema da oração, realidade que salpica toda a obra de Caminho, o que Teresa pretende é traçar o esboço de um novo “estilo de irmandade e recreação” (F 13, 5). O que não impede que a oração seja o tema estrela, entendida sempre em sua dupla dimensão de “presença” e de “relação”. Neste sentido, se pode afirmar que humanismo e vida interior profunda, são os dois eixos em torno aos quais Teresa faz girar sua obra. Estamos diante de um novo estilo de vida evangélica que desemboca na oração contemplativa. E uma oração contemplativa que potencia todo o evangélico, todo o humano verdadeiro da vida humana.

Com relação à estrutura geral da obra e os temas configuradores do Caminho, essencialmente poderíamos afirmar o que segue (M. Herráiz); os primeiros capítulos versam sobre a finalidade da reforma teresiana, desde o capítulo quarto a autora se adentra no tema da ética da comunidade cristã (amor, liberdade, humildade), e a partir do capítulo dezesseis se centra na oração e suas variantes (com um longo comentário sobre o Pai Nosso desde o capítulo vinte sete, mesclando em todo caso com o tema estrela da oração). O obsessivo tema da honra e a palpitante questão da mulher[1], serão outros temas presentes, e que não convém desprezar.

4. Partes e conteúdo

Uma primeira visão de conjunto, estruturada por capítulos, poderia ser a seguinte: finalidade da reforma teresiana (caps. 1-3); a necessidade de uma ética comunitária para tornar uma comunidade orante (caps. 4-15): amor fraterno, desapego e humildade; oração ativa e contemplativa (caps. 16-18); oração vocal, mental, recolhimento, quietude, união [natureza da oração e suas exigências] (caps. 19-32). A partir do cap. 27, comentário ao Pai Nosso. A devoção ao Santíssimo Sacramento (33-35: Eucaristia). Resto dos capítulos: honra, oração, tentações diversas..., o que poderíamos chamar efeitos da contemplação.

A. O humanismo evangélico teresiano

O encontro de Teresa com Cristo, sua experiência cristológica, vai decidir também sua experiência do humano, do humano verdadeiro. A plenitude do humano, ser a pessoa mesma, Teresa descobre junto a Jesus dos Evangelhos. Essa é sua melhor escola de humanidade e de humanismo. A mesma escola a que hoje também nós temos que voltar uma e outra vez.

Os chamados pressupostos da oração, ou seus fundamentos, ou sua pedagogia oracional (a propedêutica, o prévio necessário), constituem o nuclear do humanismo evangélico teresiano, que se pode rastrear nos capítulos 4 ao 15 do Caminho. E aqui, as três palavras mágicas são: amor, desapego (liberdade) e humildade, que como diz Teresa, “parece-me que andam sempre juntas” (C 10, 3). “Antes que diga do interior, que é a oração, direi algumas coisas que são necessárias ter as que pretendem levar caminho de oração, e tão necessárias que, sem ser muito contemplativas, poderão estar muito adiante no serviço do Senhor” (C 4, 3).

Junto à tríade amor, liberdade, humildade, importa chamar a atenção sobre a audácia e determinação teresianas: “Oração e vida regalada são incompatíveis” (C 4, 2). E é que no conforto (assim devemos traduzir hoje o ‘regalo’ teresiano) nunca há crescimento. Daí a importância de ir mais além de uma “cultura do sofá”, de não acomodar-se, de desinstalar-se. Tudo o que é mais valioso na vida, exige um esforço encaminhado sempre ao crescimento pessoal. Ao menos isso parece indicar a conhecida expressão da Santa: a determinada determinação. Como disse T. Alvarez, estamos diante do “slogan da ascese teresiana”.

A “determinada determinação” é, além do mais, uma atitude global, que define ao orante de uma maneira existencial e vital. Em sentido metafórico, remete à luta, ao combate, à peleja: “pelejai”, “não viestes aqui senão para pelejar” (C 20, 2). A “determinação” teresiana não é uma mera atividade puramente pontual, nem se pode reduzir a um momento de oração em um canto da capela e com vela acesa. Trata-se melhor de uma atitude existencial, que empapa a vida toda.

B. Dimensão orante e vida interior

Nesta nova seção (desde o cap. 16) nossa autora volta seu olhar sobre o nuclear da oração, contemplada em suas diferentes variantes e recorridos, e também suas limitações... Aparecem os primeiros passos para a oração contemplativa, para continuar depois com a oração em chave de meditação (meditação “consciente”), a oração centrante (de “recolhimento”, dirá Teresa), a oração contemplativa em si e, finalmente, as relações entre oração e presença.

“No caminho para a contemplação”: este poderia ser o título do tema que Teresa vai desenvolver fundamentalmente nos capítulos 16-19. Aparece agora também a relação entre atividade e contemplação. Vamo-nos encontrar, além do mais, com um primeiro esboço da contemplação em perspectiva teresiana.

Nos capítulos 22-25 do Caminho, Teresa se centra no tema da meditação, prestando especial atenção à oração vocal e mental. Diante dos que desprezam então o valor da oração vocal, Teresa busca infatigavelmente mostrar a identidade entre ambos tipos de oração. Colocará a dignidade da oração vocal de manifesto no comentário que levará a cabo do Pai Nosso, para ela, síntese dos graus de oração (CE 73, 3), e trampolim para a oração contemplativa, que sempre permanece como um dom. E porque toda oração vocal autêntica termina em oração mental, ou seja, em autêntica meditação: “Se falando, entendo perfeitamente e percebo que falo com Deus... junto está oração mental e vocal” (C 22,1; 22,3).

Teresa se levanta contra uma mera recitação mecânica de fórmulas na oração, seja qual seja, pois junto aos lábios, deve-se abrir o coração e a vida toda. Para ela a oração autêntica é um diálogo de amizade, o que implica necessariamente atenção ao nosso interlocutor (C22, 1; 24, 2). Não basta com um mero cumprir externo e vazio, nem com uma mera recitação formal. Estamos diante de um lance decidido, pelo que vamos chamar “meditação consciente’ (seja vocal ou mental).

Nos capítulos 26 ao 29 (no cap. 27 começa o comentário do Pai Nosso) de Caminho, Teresa fala da assim chamada oração de “recolhimento”, que nós vamos traduzir por “oração centrante”, atualizando um pouco sua velha terminologia. A atenção a “Cristo”, atenção pessoal e relacional, por uma parte, e “entrar na” pessoa mesma, abstração em si mesmo, por outra parte, definem a estrutura dessa seção. Digamos que por uma parte aparece a dimensão psicológica dos sentidos; e por outra parte aparece a dimensão cristológica (focalizar a atenção em Cristo). Num caso e no outro se remete ao profundo, além de onde começa a intuir-se a verdade da vida: “o íntimo da alma, o mais fundo e íntimo, no mais íntimo da alma”, etc.

Nos capítulos seguintes, Teresa entra na assim chamada oração de quietude e a oração de união, que vem identificar-se, em termos gerais, com a oração contemplativa ou “mística” (não convém distrair-se com velhos nominalismos).

Teresa define a dita experiência orante com as seguintes palavras:

“Porque aqui, a alma se põe em paz, ou o Senhor a põe em Sua presença, melhor dizendo... já que todas as faculdades se sossegam. A alma compreende, de uma maneira muito longe do alcance dos sentidos exteriores, que já está junto do Seu Deus e que, com mais um pouquinho, chegará a formar uma única coisa com Ele por meio da união”. (C 31, 2)

A contemplação sempre é um presente, um dom, ou como diz Teresa, é “coisa sobrenatural” e que não a podemos procurar por diligências que façamos” (C 31, 2). O de “sobrenatural” não remete a experiências raras ou extraordinárias, remete à graça, ao gratuito e, no fundo, remete ao humano autêntico. Teresa insiste (agora através de uma imagem) na gratuidade da dita experiência, e em que não depende nunca de nosso esforço: “isso é uma bobagem, pois assim como não podemos fazer amanhecer, tão pouco podemos impedir que anoiteça; já não se trata de obra nossa, pois é sobrenatural, algo que está bem fora de nosso alcance”.

Para terminar esta parte, não queríamos deixar de assinalar um aspecto chave, que é o da relação entre a oração e presença. O difícil sempre em Teresa (tão ampla e diversa, sempre tão desbordante) é encontrar um fio condutor para contar e explicar sua experiência de Deus: esse fio poderia ser a experiência da “presença” divina. Porém, de que falamos quando falamos de “presença” em Teresa? Estamos diante de um conceito que nasce do contato com a vida: a relação, o encontro, a comunicação interpessoal, que se faz experiência, diálogo vivo, entrega mútua... Presença é consciência de que algo/Alguém está conosco.

Em umas simples palavras de Caminho, está condensado o método da oração teresiana: “Procurai logo [imediatamente], filhas, pois estais sós, ter companhia, e que melhor companhia que a do próprio Mestre?” (C 26, 1); “Representai o próprio Senhor junto de vós...” (C 26, 1). “Junto andemos, Senhor...” (C 26,6). Essa poderosa sensação de “presença” é o verdadeiro estimulo da experiência mística teresiana.

E não nos esqueçamos do comentário ao Pai Nosso. A interpretação que Teresa leva a cabo da oração central cristã é um comentário livre, com digreções contínuas de oração espontânea. A partir do capítulo 27 até o final de Caminho se estende o dito comentário. Porém sempre com longos parênteses e mesclas com o tema da oração em geral e suas variantes. Até o ponto de que a pessoa tem a sensação de que o dito comentário não passa de ser uma desculpa para falar com liberdade e prolongadamente do tema da oração, ou de outros temas, como a Eucaristia: o mesmo comentário ao pedido do “pão” se converte em uma desculpa para falar precisamente da Eucaristia (caps. 33-35 de Caminho).

5. Leitura existencial e efeitos

E é que Teresa dá testemunho em cada página por ela escrita. A certeza da fé que hoje alguns buscam, não se conserva mediante ideologias, formulações rígidas e normas precisas e estreitas, mas pela experiência da oração, da vida sacramental. Teresa, em vez de explicar, discutir ou esclarecer e compreender tudo, nos testemunha, anuncia, contagia, confessa, agradece o dom do amor de Deus, da verdade. Canta as misericórdias do Senhor com sua maneira de estar no mundo, de confessá-la pela conversão do coração (C. Kaufmann).

“Ela se põe a falar, não a esculpir máximas para a posteridade, porém o faz com uma voz tão fresca e feminina, que se impõe só pela beleza de seus conceitos e de suas emoções e o coração cresce na pessoa, se lhe abrem muitas portas que não sabiam que existiam. [...] Seus escritos surtem um efeito libertador. De repente, o mundo se converte em um meio, não em um fim, para crescer no amor, para ser mais e ter menos, para que a alma comece a voar incendida em amor e em alegria de viver para embelezá-lo. Por isso é uma santa alegre, como são suas carmelitas” (Jesus Cotta).

Precisamente, nos capítulos 36 ao 42 de Caminho (por onde discorrem temas como a honra, oração, tentações diversas...) vamos encontrar o que poderíamos chamar os feitos da contemplação. E entre todos os “efeitos”, o do perdão (cf. especialmente o capítulo 36) e a capacidade para perdoar, é sem dúvida o mais significativo, e sobre o que insistentemente Teresa volta.

O contemplativo pode ter outras “faltas e imperfeições”, porém, segundo nossa mística, nunca deve não perdoar, “com esta [falta] não vi nenhuma [pessoa contemplativa]”. E Teresa insiste mais adiante: o contemplativo deverá examinar com cuidado em si mesmo como esses efeitos vão aumentando; se não vir nenhum em si, deve temer muito e não acreditar que esses regalos venham de Deus. (C 36, 13).

Enfim, a verdadeira oração ou experiência mística se mede e autentica em seus efeitos. É esta a chave à que continuamente os místicos apelam. Pois, se dita experiência tem a ver com Deus, dirá Teresa, “não há o que temer; consigo traz humildade” (C 17, 3). E assim, “se o desejo fosse de Deus, não lhe teria feito mal, porque, nesse caso, traz consigo a luz, o discernimento e a medida” (C 19, 13). De Deus, que por sua própria natureza é amor e positividade pura, só pode vir positividade e amor, ou na lista aberta que Teresa nos deixou: humildade, luz, discrição, medida, afabilidade... E, antes de tudo, perdão. Sobretudo perdão. O mais divino de Deus. O mais humano do homem.



[1] Para este tema, nenhum estudo melhor que o de T. EGIDO, “ambiente histórico” em: Introducción a la lectura de Santa Teresa, Madrid, EDE, 2002, PP. 63-155. Não se deixe de ler a queixa apaixonada (e ressentida) de Teresa em defesa das mulheres, na primeira redação, CE 4, 1, autêntico “manifesto” de feminismo precoce, como acertadamente assinalou o mesmo Egido.

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