Ordem para escrever
O livro das Moradas ou Castelo Interior de Santa Teresa é considerado normalmente como o melhor dela. Este livro mais que história, tem biografia, mais ainda, autobiografia. Em seu diálogo com Gracian, falando do livro da Vida, este falou à santa: “Faça memória daquilo que lembrar e de outras coisas e escreva outro livro, e diga doutrina em comum, sem nomear a pessoa que tenha experimentado”.
Esse outro livro foi o Castelo Interior. A própria autora contenta com sua obra, gosta mais desta que da outra: a Moradas sobre a Vida e em termos de joalheria, mesmo sendo para ela Vida uma joia, é mais precioso e com mais delicadas pedras preciosas o segundo (Castelo Interior), ou, como ela mesma nos diz: “A meu parecer é melhor o que escrevi depois, apesar de dizer Frei Domingos Bañez que não é tão bom; pelo menos tinha mais experiência que quando o escrevi”.
A ordem de escrever As Moradas veio de três lugares, do Pe. Gracian, do Doutor Velazque, e do “Vidreiro” maior: Jesus, que por outro lado era seu livro Vivo”.
As condições de saúde que estava passando a Madre eram muito penosas “com ruído e fraqueza tão grande (de cabeça) que ainda os negócios escrevo com pena”. A situação da Ordem era de perigo e Teresa estava confinada em Toledo, como uma prisão. Mas a fortaleza desta mulher faz que tenha equilíbrio para poder escrever coisas grandes. E aquela que levou tantas fundações sem saúde e no meio de tantas contradições, vai agora construir este seu castelo com a mesma força de vontade.
Tempo de escritura, autógrafo e destinatárias
A hora da primeira pedra e da última é ela mesma quem nos fala: “E assim começo a cumprir ( a obediência que encomendaram) hoje, dia da Santíssima Trindade ano de 1577 neste mosteiro de São José do Carmo em Toledo onde me encontro”. Isto no prólogo. Na conclusão do livro: “Acabou-se de escrever no mosteiro de São José de Ávila, ano de 1577, véspera de Santo Andre (29 de novembro), para a glória de Deus que vive e reina por sempre jamais, amém” (7M,conclusão 5)
Total de seis meses menos dois dias, desde que começou a escrever até o final. Um par de vezes, ao menos, fala de interrupção na escritura, “porque os negócios e a saúde me obrigam a parar” (4M 2,1) e em outro lugar dirá: “passaram quase cinco meses desde que comecei até agora, e, como a cabeça não está boa para torná-lo a ler, todo deve ir desbaratado, e por ventura falei algumas coisas duas vezes” (5M 4,1). Volta sobre o manuscrito e termina a obra em 29 de novembro.
E uma vez concluído o livro, dá “por bem empregado o trabalho, apesar de que confesso que não foi muito”. O autógrafo das Moradas se encontra no mosteiro das carmelitas descalças de Sevilla desde outubro de 1618. Em 1622 foi levado em procissão pelas ruas de Sevilla por ocasião das festas pela canonização da autora. E a última e mais prolongada saída do manuscrito foi até Roma em 1961, onde foi restaurado pelo “Instituto Ristauro Scientifico do livro” do Vaticano e o “Instituto di Patologia do livro” de Itália. Voltou a Sevilla em 1962 e ali se conserva no convento das descalças, em um relicário bonito: as muralhas de Ávila, que se converteram em castelo para encerrar e custodiar o autógrafo do Castelo Interior. Idéia do Geral da Ordem naquela época Padre Anastásio Ballestrero.
As destinatárias primeiras são suas monjas, como disse na “dedicatória”: “JHS. Este tratado, chamado Castelo Interior, escreveu Teresa de Jesus, monja de nossa Senhora do Carmo, a suas irmãs e filhas as monjas carmelitas descalças”.
Destinatário da obra é também todo fiel cristão, candidato à santidade desde seu batismo.
Visita ao Castelo
É a autora que nos vai guiando desde uma de suas confissões primeiras. Está com a pena na mão vendo como poderá começar a escrever e “se me ofereceu o que agora vou dizer para começar com algum fundamento, que é; considerar nossa alma como um castelo de um diamante ou claro cristal onde existem muitos aposentos, assim como no céu há muitas moradas (Jô 14,2; que),se bem consideramos irmãs, não é outra coisa a alma do justo senão um paraíso onde disse que tem seus deleites.” ( Prov. 8,31) (1M 1,1)
Desde esta perspectiva, sem nenhuma complicação, entendemos qual, aliás, quem é para ela o castelo interior: a pessoa humana, e vemos como está deixando-se iluminar por esses dois textos bíblicos, de João e de Provérbios.
Para organizar a leitura, o estudo de obra tão importante como esta, para assaltar este Castelo (se me permitem usar a frase) tem se publicado já faz tempo “um grande trabalho no qual se analisam com lupa os núcleos básicos da simbologia Teresiana, os eixo temáticos de cada uma das moradas, o itinerário léxico da interiorização, o caminho à construção simbólica da interiorização mesma” (Montserrat Esquerdo Sorte).
Este tipo de estudo e de leitura não é fácil para a maioria dos leitores do livras das Moradas. Porém temos ao alcance das mãos uns esquemas simples, mas fácil de compreender. Nesta elaboração entram elementos doutrinais básicos, nos quais se inter-relacionam os dois protagonistas: Deus e o homem. Deus que vive e atua, e se comunica dentro. O homem (a alma) como cenário e protagonista da aventura espiritual. E a oração, que é a ponte de comunicação entre Deus e a alma. Aqui surge a ideia, o conceito de “moradas”.
Teresa divide a obra O Castelo em sete moradas, mas ela mesma avisa: “não considerem poucas peças senão um milhão” (2M 2,12), e mais claramente: “Mesmo se tratando só de sete moradas, em cada uma delas tem mais: em baixo e alto e a os lados” (7M conclusão três).
Prescindindo da compreensão do castelo no qual se encontram e se veem e se pode visitar e recorrer os diversos aposentos, estâncias, quartos, moradas, temos que lembrar que a alma é a que tem em si mesma as diversas ou diferentes moradas, as leva consigo, é considerada como dividida em sete moradas, sem prejuízo de que essas sete se convertam em setenta vezes sete, isto é, em inumeráveis.
Isto fica iluminado pelo que disse nas Fundações 14, 5: “Quanto menos tenhamos aqui, mais gozaremos naquela eternidade, onde são as moradas conforme o amor com que tenhamos imitado na vida de nosso bom Jesus”. Esse além já está presente no momento em que começa a escrever: “Onde há muitos aposentos, assim como no céu existem muitas moradas” (1m 1,1). Aqui sentimos o sussurro do passo evangélico, mesmo sem mencionar: “Na casa de meu Pai tem muitas moradas” (Jó 14,2).
O percurso pelo Castelo se torna fácil e prazeroso da mão da autora. Lendo devagar o prólogo, se deixe levar o leitor pelos títulos dos 27 capítulos que tem o livro. A Santa tem uma habilidade singular para sintetizar nesses epígrafes o que quer dizer. Mais ainda, como parece seguro, que os títulos estão escritos depois de relatado o texto, é dupla a habilidade sintetiza Dora e clarificadora da autora.
Terminada a leitura dos 27 títulos, ponha atenção o leitor na Conclusão, especialmente nos nº 2 e 3, onde a Madre deposita uma vez mais critérios de vida e de leitura que foi semeando ao longo do livro.
Outro método simples para ir fixando na mente a doutrina do Castelo Interior consiste em atender à sustância bíblica que a Santa move em cada uma das moradas. Falamos sustância bíblica integrada de textos, de tipos, de personagens, de motivos bíblicos.
Podemos ver como exemplo nas Segundas Moradas, onde encontraremos:
1. -Textos: “Quem anda no perigo nele perece” (Si 3,26); “não sabemos o que pedimos” (MT 20,22); “sem sua ajudo não podemos fazer nada” (Jô 15,5); “a paz esteja convosco” (Jô 2, 19. 21)
2.-Tipos bíblicos: o filho pródigo, perdido e comendo manjar de porcos (Luc 15,16); e os soldados de Gedeon quando iam à batalha (Ju 7, 5-7)
3.-Textos e motivos ao mesmo tempo: “Nenhum irá ao Pai senão por mim” (Jo 14,6); “quem me vê a mim vê a meu Pai” (Jo 14,19).
Este fio condutor é fácil de seguir e mui útil ao longo de todas as moradas. Não podemos esquecer tampouco algo que ela usa muito: o mundo de seus símiles, exemplos ou comparações, que em sua pedagogia faz com que se pareça a Mestre. Um dos exemplos completos é a comparação do Castelo: 1M 1,3. Este símile não é exclusivo ( não em seu espírito e na sua pena )das Moradas já tem usado no Caminho: CV, 28, 9-12; CE 48, 1-4; em Caminho não usa a palavra “castelo”, senão “palácio”, mas a sustância é a mesma. Outro exemplo de comparação, e talvez o melhor, o do verme de seda: (5M 2, 1-10).
O tema por assim dizer, a realidade da oração, está presente em todo o Castelo como fio condutor. A presença da oração está bem claramente exposta já em 1M 1,7: “A quanto eu posso entender, a porta para entrar neste castelo é a oração e consideração, não digo mais mental ou vocal, que sendo oração há de ser com consideração; porque aquela que não adverte com quem fala ou pede e quem é quem pede e a quem isso não é oração, mesmo que mexa muito os lábios”.
Esta afirmação não podemos perder de vista, tendo em conta a evolução que vamos seguindo: oração rudimentar, como primeiro ensaios; meditação, simples olhar, estar na presença de Deus; recolhimento infuso, quietude, gostos; oração de união, Deus no fundo da alma; formas extáticas, visões. Alocuções, êxtases, ferida de amor; ânsias de eternidade; contemplação perfeita. Da conjunção de todos esses elementos que vamos assinalando, bem usados, irá surgindo no leitor, além do gosto mental, a compreensão da doutrina Teresiana.
Alguém da França escreveu faz tempo, porém não era por causa da doutrina Teresiana: “A oração é o primeiro de tudo. Não é o essencial: o essencial é a caridade, que resume em si mesma a perfeição, Deus mesmo. Mas a oração é o primeiro”.
Por isso escreveu com toda a razão José Vicente Rodriguez: “Partindo da realidade da graça e do amor, que fazem que a alma seja agradável a Deus, que seja o paraíso onde ele se deleita (1M 1,1), as moradas vão se fazendo a partir do amor, viram a ser os diversos graus de amor da alma, já que “o aproveitamento da alma não está em pensar muito, senão em amar muito” (F 5,2), e também para “subir às moradas que desejamos, não está a coisa em pensar muito, senão em amar muito” (4M 1,7). Esse amor não exclui de outras atividades, outros exercícios, e assim teremos que a alma estabelecida em amor, se empregará, v. Gr., no próprio conhecimento e no exercício da humildade, e termos as primeiras moradas (1M 2,8-9). Dar se também diversificação segundo as diferentes Mercedes recebidas de Deus (1M 1,3). Isto vemos bem claro na leitura seguida desta obra Teresiana, sendo com algo típico e fundante, v. Gr., das quartas moradas, a oração de quietude; das quintas, a oração de união; das sextas, os esponsais espiritual e das sétimas, o matrimonio espiritual”.
Para entender plenamente como a santa leva todo seu carregamento doutrinal, se aconselha ler com toda atenção o último capitulo de todo o livro: (7M c. 4). Aqui temos a impressão que a Madre quer chegar sobre os fundamentos mais sólidos da vida cristã: o amor fraterno e a configuração com Cristo. O Castelo Interior é, sem dúvida, um manual muito bom de santidade.
Como ajudas e pontos de referencia no recorrido do Castelo é importante e útil gravar na memória alguns pontos nos quais a Madre condensa a doutrina que vai estendendo seus tentáculos ao longo de todo o livro. Vejamos uns exemplos: Grandeza, dignidade,, capacidade, formosura da alma humana: 1M 1. Presença total, natural, sobrenatural de Deus na alma: 5M 1,10. Consciência Teresiana da diversidade de almas: 1M 1,3;5M 3,4. Fabricar cada um sua morada em Deus: 5M 2, titulo e corpo do capitulo. Ser espirituais de verdade: 7M 4,8. Não ficar anões: 7M 4,9. Ser plenamente realistas: 7M 4,14. Não colocar taxa às obras de Deus: 6M 4,12.
E como capitulo imprescindível sobre Cristo temos que ler 6M 7, onde o titulo diz o seguinte: “disse quão grande erro é não se exercitar, por muito espirituais que sejam, em trazer presente a Humanidade de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, e sua sacratíssima Paixão e vida, e em sua gloriosa Mãe e santos. È de muito proveito”. É um capitulo paralelo com Vida 22.
Conclusão
Em 6M 10,3 nos surpreende a Santa com a identidade e ao mesmo tempo com a diversidade que assinala neste passo: “Façamos agora conta de que é Deus como uma morada ou palácio grande e formoso, e que este palácio, como digo, é o mesmo Deus”. Tirando dessas palavras chegamos a aquilo de “sede castelos formosos como vosso Pai celestial O é”.
O famoso catecismo holandês apresenta assim aos crentes de hoje esta obra Teresiana: “Santa Teresa escreveu um livro em que a alma está representada por um Castelo com sete moradas. Morada trás morada se chega à sétima na que habita Deus, isto é, Cristo. Sua presença se percebe em todo o Castelo, mas ao chegar a alma ao centro, imersa na própria realidade, se sente invadida ou pelo sereno sentimento de que Deus está nela. A alma vive dentro da realidade terrena, que se apresenta magnífica diante de seus olhos, pois compreende que Deus é o coração inefável de toda realidade”.
Na postulação para o doutorado da Santa se encontra como peça principal o Informe do advogado da causa. Para defender a altura da iminente doutrina da doutoranda se oferece um pequeno resumo das Moradas desta maneira:
Esta “é a principal obra Teresiana, e mais, segundo alguns, de toda a mística cristã [...].O livro se divide em sete partes, ou por moradas, das quais cada uma tem vários capítulos, exceto as segundas que só tem um capitulo.
As primeiras moradas (02 capítulos) são as almas que tem desejos de perfeição, mas estão ainda dentro das preocupações do mundo, das quais devem fugir e buscar a solidão.
As segundas moradas (01 capítulo) são para as almas com grande determinação de viver em graça e que se dedicam à oração e alguma mortificação, ainda com muitas tentações por não deixar totalmente o mundo.
As terceiras moradas (02 capítulos) são para as almas que exercitam a virtude e a oração, mas colocando um disfarçado amor de si mesmos. Precisam de humildade e obediência.
As quartas moradas (03 capítulos) são já o começo das coisas “sobrenaturais”: a oração de quietude e um inicio da união. Os frutos não são ainda estáveis; as almas devem por isso tem que fugir do mundo e das ocasiões.
As quintas moradas (04 capítulos) são já de plena vida mística, com a oração de união que é sobrenatural e a de Deus quando quer e como quer, apesar de que a alma pode se preparar. Os sinais verdadeiros de esta união é que seja total, que não falte a certeza da presença de Deus e que sucedam tribulações e dores em que provar o amor a Deus. Necessita se de muita fidelidade.
As sextas moradas (11 capítulos). Logra se uma grande purificação interior da alma, e entre as graças que nela se dão, totalmente sobrenaturais, estão as alocuções, êxtases, etc., Grande zelo pela salvação das almas, que leva a desejar sua solidão. É necessária a contemplação da Humanidade de Cristo para chegar aos últimos graus da vida mística.
As sétimas moradas (04 capítulos) são o cume da vida espiritual, na que se recebe a graça do matrimonio espiritual e uma intima comunicação com a Trindade, da qual brota espontaneamente uma grande paz na que vive a alma, sendo ativa e contemplativa ao mesmo tempo. “Uma contemplação que não é subjetiva, senão que transcende ao homem fazendo que se esqueça de si mesmo e assim entregar-se a Cristo e à Igreja”.
Esta espécie de resumo autorizado é como a apresentação do castelo em seu conjunto; e é ao mesmo tempo um convite para ir verificando toda essa estrutura, não de uma maneira mental ou intelectual senão vivencialmente, isto é, desde a práxis e experiência cristã e tudo isso levados da mão de Teresa de Jesus doutora da igreja.
Tradução : Frei Francisco Xavier Yudego Marin, ocd